UM HOMEM DA PLATEIA

Silêncio! fora a peça! que maçada!
Até o ponto dorme a sono solto!

Levanta-se o pano até o meio.
Passa por debaixo e vem até a rampa o PRÓLOGO,

velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça
frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira
na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:

Dom Quixote, sublime criatura!
Tu sim! foste leal e cavaleiro,
O último herói, o paladim extremo
De Castela e do mundo. Se teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos
Em que a infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores...
E a louca multidão renega o Cristo!
Tua loucura revelava brio:
No triste livro do imortal Cervantes
Não posso crer um insolente escárnio
De cavaleiro andante aos nobres sonhos,
Ao fidalgo da Mancha, cuja nódoa
Foi só ter crido em Deus e amado os homens
E votado seu braço aos oprimidos.
Aquelas folhas não me causam riso,
Mas desgosto profundo e tédio à vida.
Soldado e trovador, era impossível
Que Cervantes manchasse um valeroso
Em vil caricatura! e desse à turba,
Como presa de escárnio e de vergonha,
Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!...

Estas idéias
Servem para desculpa do poeta.
Apesar de bom moço o autor da peça
Tem uns laivos talvez de Dom Quixote...
E nestes tempos de verdade e prosa
- Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos
Que velavam nas torres encantadas
As donzelas dormidas por cem anos -
Do seu imaginar esgrime as sombras
E dá botes de lança nos moinhos.

Mas não escreve sátiras: apenas
Na idade das visões dá corpo aos sonhos,
Faz trovas e não talha carapuças,
Nem rebuça no véu do mundo antigo,
Pra realce maior, presentes vícios,
Não segue Juvenal e não embebe
Em venenoso fel a pena escura
Para nódoas pintar no manto alheio.

O tempo em que se passa agora a cena
É o século dos Bórgias. O Ariosto
Depôs na fronte a Rafael gelado
Sua c'roa divina e o segue ao túmulo.
Ticiano inda vive. O rei da turba
É um gênio maldito - o Aretino,
Que vende a alma e prostitui as crenças.
Aretino! essa incríivel criatura,
Poeta sem pudor, onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola...
Vaso d'oiro que um óxido sem cura
Azinhavrou de morte... homem terrível
Que tudo profanou co'as mãos imundas,
Que latiu como um cão mordendo um século!
E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira...
Como ele, foi devasso todo o século:
Os contos de Boccaccio e de Brantôme
São mais puros que a história desses tempos...
Tasso enlouquece. O Rei que se diverte
- O herói de Marignan e de Pavia
Que num vidro escrevera do palácio

"Femme souvent varie", mas leviano
Com mais amantes que um Sultão vivia -
Mandava ao Aretino amáveis letras,
Um colar d'oiro com sangrentas línguas
E dava-lhe pensões. O Vaticano
Viu o Papa beijando aquela fronte.
Carlos V o nomeia cavaleiro,
Abraça-o e - inda mais! - lhe manda escudos.
O Duque João Médici, o adora,
Dorme com ele a par no mesmo leito...
É um tempo de agonias: a arte pálida,
Suarenta, moribunda, desespera
E aguarda o funeral de Miguel Ângelo,
Para com ele abandonar o mundo
E angélica voltar ao céu dos Anjos.

Agora basta. Revelei minh'alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia, em vez de um ato
Se o poeta, mais forte, se atrevesse
A erguer nos versos a medonha Sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro.

Boas noites! platéia e camarotes:
O ponto já me diz que deixe o campo,
O primeiro galã todo empoado,
Cheio de vermelhão, já dentro fala...
Estão cheios de luz os bastidores.

Uma última palavra: o autor da peça,
Puxando-me da túnica romana,
Diz-me da cena que eu avise às Damas
Que desta feita os sais não são precisos...
Não há de sarrabulho haver no palco.
É uma peça clássica. O perigo
Que pode ter lugar é vir o sono;
Mas dormir é tão bom, que certamente
Ninguém por esse dom fará barulho.

O assunto da Comédia e do Poema
Era digno sem dúvida, Senhores,
De uma pena melhor; mas desta feita
Não fala Shakespeare, nem Gil Vicente.

O poeta é novato, mas promete:
Posto que seja um homem barrigudo
E tenha por Tália o seu cachimbo
Merece aplausos e merece glória.